Notas soltas (por Manuel Heleno)
Onde encontrar nobreza sem arrogância, amizade que não
seja cobiça e beleza sem vaidade ?
Puro-Sangue Árabe
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ntusiasta que sou do mais extraordinário cavalo do mundo,
melhorador de todas as raças e senhor entre os senhores, há muito que me
interesso pelo estudo da origem da raça Puro-Sangue Árabe.
Amador consciente li um primeiro tratado sobre o assunto
e a minha convicção não deixou dúvidas: a raça Puro-Sangue Árabe era
incontestavelmente de origem siríaca. Para completar os meus conhecimentos
achei que deveria ler outra obra. Com grande surpresa verifiquei que,
indubitavelmente, ele não era siríaco mas sim africano ! Um terceiro tratado
demonstrou-me rapidamente que o Puro-Sangue Árabe provinha da mesopotâmia,
outro que ele era mongol... Enfim, respeitáveis autores provaram-me
sucessivamente que o berço da raça se encontrava no Yemen, na Turquia, na Rússia, no Egipto, etc...
Atormentado, inquieto, indeciso, continuei a ler,
continuei a instruir-me. Fiz sonhos tumultuosos que colocavam a mais antiga das
raças equinas nos gelos antárcticos ou nas florestas amazónicas... E depois,
calma suprema e alegria inesperada, li numa obra: « O Cavalo Árabe vem da
Arábia ». Que descanso, mas que incerteza !
A origem do Cavalo Árabe
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Vamos no entanto expor de
uma maneira extremamente sucinta as principais teorias sobre o assunto,
começando pelas mais fantasistas, sejam aquelas que se baseiam na lenda.
Muitas religiões, lendas,
superstições, misticismos, fábulas ou tradições, fazem o elogio do Cavalo
Árabe, ao mesmo tempo que explicam a sua origem. Vejamos algumas das mais
curiosas:
Deus agarrou então
daquele vento um punhado e criou um cavalo a quem disse: « Nomeio-te e crio-te Árabe. O bem ficará
ligado às crinas do teu topete. Os troféus de guerra serão conquistados graças
ao teu dorso musculado. A força estará sempre contigo. Eu, prefiro-te a todos
os animais, de que te faço Senhor. Crio-te amigo do teu dono. Quero-te capaz de
voar sem asas, pois és destinado à perseguição. Os homens que te montarão
glorificar-me-ão e proclamarão a minha grandeza. E quando eles me glorificarem
tu glorificar-me-ás e proclamarás a minha grandeza ».
Ao passarem pela casa de
uma velhota, o homem apeou-se para dar ao animal o tempo de parir.
O poldro foi confiado à
velha.
O cavaleiro montou de
novo, continuou a fugir e galopou um dia e uma noite a toda a brida.
Já longe dos seus
perseguidores, apeou-se para deixar a égua descansar. Qual não foi a sua
surpresa quando, pouco depois, viu chegar o recém nascido !
Chamou-lhe El Koheil El
Adjouz (Koheil derivado de kôhl, quer dizer preto azulado, e Adjouz de velha).
Para muitos, foi este « o primeiro
Cavalo Árabe nobre » que deu origem à raça.
w Maomé, profeta de
Alá, acampou à borda de um ribeiro de águas límpidas e frescas.
Ordenou então que numa
cerca uma centena de éguas fosse voluntariamente privada de água durante vários
dias.
Maomé mandou depois abrir
a vedação. As éguas começaram a correr para o ribeiro. O profeta chamou-as. Só
5 vieram alegremente ter com o dono, antes de beberem. Maomé abençoou-as.
Para alguns foram estas 5
éguas que deram origem a todos os cavalos Azil (de sangue puro). São conhecidas
pelo nome de Kamsa Al Razul Allah (As Cinco do Profeta) e chamam-se: Habdah,
Hamdaniya, Kohaila, Saklawiyah e Abbayah.
O especialista Karl R.
Raswan está convencido que as 5 grandes famílias da raça Árabe hoje
mundialmente conhecidas descendem das Kamsa.
Estava cheia e num bonito
dia de primavera deu à luz um poldro que foi chamado Kôheilan (antílope preto)
e que se tornou num magnífico garanhão.
Ismael cruzou-o com a
Kohl, sua mãe, e mais tarde com as irmãs.
É assim que, em acordo
com esta lenda, Kôheilan seria o antepassado do Cavalo Árabe, dando origem a
uma linhagem que realmente chega aos nossos dias.
Antes de saírem, pediram
alguns mantimentos. Em vez deles, Salomão ofereceu-lhes um cavalo e disse-lhes:
« Quando acamparem, ponham sobre
este cavalo um homem armado de uma lança. Ainda vocês não acabaram de acender a
fogueira, já o caçador estará de volta com alguma presa, pois este cavalo é
mais rápido que qualquer outro animal ».
O povo de Al-Azd
baptizou-o Zad-El-Rakib (viático do cavaleiro).
A tradição árabe pretende
que foi este o cavalo patriarca da raça e Ben Hodeil El Andalusi (sec. XIV)
escreve: « É a ele que se deve a
origem dos garanhões Árabes ».
II - O
Árabe africano
Esta opinião foi
defendida, no princípio do nosso século, por Reimach, Mercier, Lombard e Ridgeway.
Para estes estudiosos a Península Arábica não possuiria cavalos e o Árabe
encontraria a sua origem no continente africano, como o confirmam certos textos
antigos e de tradição Árabe.
Efectivamente, sabe-se
por exemplo que Salomão, como seu pai David, tinha uma coudelaria célebre cujos
cavalos vinham do Egipto. Ora, como dissemos, para muitos autores, o primeiro
garanhão Árabe foi Zad-El-Rakib, que pertencia ao Rei Salomão.
Por outro lado, entre a
Etiópia e o Yemen, houve sempre contactos directos que levaram muitos cavalos
africanos para a Arábia.
Ridgeway e Lombard
consideram que os primeiros garanhões da raça faziam parte do espólio roubado
aos berberes pelos árabes muçulmanos, quando da conquista do Magreb.
Um dos principais
inimigos destas teorias foi Sir Theodore A. Cook, que afirma que as suas
investigações provaram que é o cavalo berbere, bem como o turco, que vêm do
Cavalo Árabe original e não o contrário.
Outros opositores à
teoria africana invocam as últimas descobertas arqueológicas, que provam a
existência de cavalos na Península Arábica há muitos milhares de anos. Na obra
de Raswan, podemos ler: « Os
escritores que afirmaram que não existiam cavalos na Arábia antes da época de
Maomé, não fizeram mais que manifestar a grandeza da sua ignorância, pois os
nossos museus e bibliotecas contêm centenas de provas do contrário ».
III - O
Árabe asiático
Os eruditos William
Youatt, Duhousset, Azpetia de Moros e Pietrement afirmam que segundo os autores
da antiguidade, não havia cavalos na Arábia antes da nossa era. Assim, os
Cavalos Árabes teriam a sua origem na Ásia Central, na bacia do Syr Daria,
actualmente ex-URSS, a leste de Uzbequistão, e teriam em seguida passado para a
Península Arábica através da Mesopotâmia. Provam-no, por exemplo, os baixos-relevos
assírios, com representações de cavalos de perfil côncavo.
IV - O
Árabe da Arábia
Muitos autores defendem
energicamente o Árabe da Arábia. Um dos mais fanáticos é Lady Wentworth, autora
de muitos trabalhos da maior importância para o Cavalo Árabe, proprietária da
mais famosa coudelaria dos tempos modernos (Crabbet Park), e do garanhão que no
mundo mais marcou o Árabe actual (Skowronek, o « Cavalo do Século »).
Numa primeira fase, o
entusiasmo de Lady Wentworth levou-a a afirmar que o Cavalo Árabe era um caso
único, tendo vivido desde a sua criação completamente isolado do resto do
mundo, durante milhares de anos, no Neijd, ao centro da Península Arábica.
Esta teoria, tão
simpática mas extremista, não aceitando absolutamente nenhuma mistura de sangue
no Cavalo Árabe, opõe-se à história da evolução natural do cavalo, começada na
era eucénica há mais de 60 milhões de anos, com um animal chamado Eohippus
(Hyracoterium), de 30 a 45 cm de altura, com 4 dedos nos anteriores e 3 nos
posteriores, e uma dentição de frugívoro.
Muitos outros autores,
como o Dr. Perron e o Major Hupton, sem serem tão categóricos como Lady
Wentworth, são partidários do Cavalo Árabe da Arábia.
O eminentíssimo Karl R.
Raswan, autor de 6 enormes volumes intitulados « Manual do criador de
Cavalos Árabes », escreve: « ...também
eu procurei a sua origem na Turquia, na África do Norte, na Síria, na Palestina
e na Mesopotâmia. Hoje, depois de ter atravessado 3 vezes a Arábia, devo
confessar que tanto do ponto de vista científico de Europeu, como no romântico
de Oriental, a superioridade da beleza e da perfeição vai por direito ao corcel
da Península Árabe... Estou agora convencido que o Cavalo Árabe tem por pátria
de origem a Arábia do Sudeste ».
Como vimos e mesmo
tomando em conta os escritos antigos ou os recentes e minuciosos estudos
feitos, uma única conclusão é possível: A procedência do Cavalo Árabe é
infelizmente muito incerta.
Mas podemos reter certos
factos importantíssimos. Com efeito tudo indica que a individualidade do
Puro-Sangue Árabe se formou na austeridade do deserto, nas dificuldades do
nomadismo, na experiência de um clima sem piedade, numa natureza em que só uma
elite sobreviveu, na poeira das batalhas e na necessidade da caça.
Pessoalmente acreditamos
que a chave do mistério deve ser procurada na antiga Mesopotâmia, entre o Tigre
e o Eufrates, ali mesmo onde viveu uma das primeiras civilizações do Mundo. De
qualquer forma uma coisa é certa, foi naquela região que o cavalo que se
tornaria no actual Puro-Sangue Árabe começou a sua prodigiosa e vertiginosa
carreira, sobretudo por ser utilizado nas tão frequentes guerras daquela zona
geográfica. E foi assim que nele se desenvolveram as suas fabulosas qualidades
de rapidez, de coragem, de sobriedade e de resistência, que desde logo o
distinguiram de qualquer outra raça.
Foi o que compreendeu o
profeta Maomé, que o tornou no mensageiro e defensor da fé, dando-lhe quase um
carácter divino. Para que um homem agrade a Deus é necessário que possua um
cavalo.
Já em 632 o Cavalo Árabe
era a peça principal de um poderoso exército de cavalaria, rapidíssimo, sem
equivalente. A Síria foi conquistada em 636, o Egipto em 641, a Pérsia em 651,
e depois, em 711, ao fim de uma incrível travessia do Magreb a cavalaria
militar islâmica entra e avança em Espanha e Portugal, para só mais tarde ser
travada já a meio da França, em Poitiers.
Desde logo o Cavalo Árabe
cruza-se com as outras raças que vai encontrando, introduzindo o primeiro
sangue oriental nas raças locais, dando-lhes a sua distinção, as suas
qualidades funcionais e o seu extraordinário carácter. E isto ao longo de
vários séculos. Não esqueçamos que o sul de Portugal esteve ocupado até meados
do século XIII e que só em 1683 o rei Sobieski da Polónia consegue travar os cavaleiros
otomanos ás portas de Viena ...
E é assim que se inicia a
extraordinária expansão mundial do Puro-Sangue Árabe, hoje presente em todos os
continentes e em quase todas as raças cavalares, que sem excepção fundou ou
melhorou, a tal ponto que podemos afirmar que sem o Cavalo Árabe o panorama
equino actual seria totalmente diferente.
Enfim, mesmo se a
proveniência da raça Puro-Sangue Árabe é perfeitamente incerta, aqueles que
como eu gostam apaixonadamente daquele nobre cavalo e que são um pouco romanescos,
acharão nesta incerteza o mistério e o misticismo orientais que tão bem convêm
ao único cavalo que, pela grande antiguidade da sua raça, sua fantástica
selecção natural e humana, e cuidadosa preservação das suas origens e
características, pode ostentar de pleno direito o título de Puro Sangue.
Manuel Heleno
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